terça-feira, 10 de agosto de 2010

Duas velhas, um Bicho peludo e meia ladainha

Duas velhas, um Bicho peludo e meia ladainha
Por Zé Alípio Martins

Que já não me bastasse tanta história que já se contou sobre Lobisomem, Lua cheia e aparições na Quaresma e o senhor ainda me vêm com mais uma?
- Sim! Mas é verdade...
- Não quero duvidar não! O negócio é que tem gente que não acredita nessas coisas.
- Sim, eu sei. Só que dessa vez...
Certo dia, quando caminhava à noite no sentido da igreja pras rezas da Semana Santa, me apareceu no caminho duas senhoras. Imaginei que , assim como eu, eram devotas das “Moções Fúnebres ao Senhor Morto”, pensei então que, dessa vez, o caminho ia ser mais curto e prazeroso...
Dona fulana e Dona Cicrana... Vou chamá-las assim, pois, mesmo dando boa noite e anunciando minha graça elas não responderam. Uma apenas murmurou! E a outra, balançou a cabeça! Eram esquisitas! Vestiam-se nuns panos compridos que se arrastava pelo chão amarrado por uma faixa que cobria do ombro à cintura... Daquele jeito que Nirinha de Dedeco desfilou de “Rainha do Milho”. Lembra!
Um lenço grande em tom azulado e outro num encarnado de doer, cobria-lhes a cabeça. Pareciam os usados na brincadeira do Pastoril. Só que, Natal já passou, faz tempo!
Carregavam em umas das mãos um cajado de madeira, que mais parecia uma estaca de varar jigo de bode e na outra as pontas dos tais lenços, que não deixavam a gente enxergar nem a metade da cara das velhas.
Caminharam mais de meia légua e caladas! Sem puxar assunto algum... Nem comigo e nem com elas mesmas!
Resolvi caçar conversa, porque já notei que esse povo daqui é meio desconfiado e cheio de nove horas.
Moram por aqui mesmo?
Estão indo pra igreja?
Mas, será o Benedito! Que pessoal estranho é esse?
Ao passarmos por aquele pé de arvoredo alto, que de dia se destaca ao longe, e o pé de serra que fica na boca da mata, ouvi um gemido estranho! Como a noite era de lua crescente, quase cheia e a visão era boa pra qualquer direção, não carece medo algum, mas, por intuição, apalpei a lateral da calça em busca do cinto pra ver se havia trazido, pelo menos, meu canivete, corri a virilha e nada.
Já viu! Troquei a calça e na hora de botar o cinto não me lembrei do danado!De toda a maneira, já era alguma coisa!
Em certos casos, só confio mesmo é no meu parabelo... Como ia pra igreja, não costumo carregar. E o pior é que o Padre observa tudo! E se notar, passa o maior sermão.
Da próxima vez... Trago e escondo em algum lugar. Mas, não venho sem meu facão. Estou me sentindo nu.
O gemido ficou cada vez mais alto e próximo.
Comadres, que mal lhes pergunte? Vocês não tão ouvindo essa coisa ai, fazendo esse VRRUUNNM...Não? Vocês são surdas?
As velhas apertaram os lenços, baixaram os queixos, reclinaram o corpo e apertaram o passo... Tudo igual. Num sincronismo perfeito, como se fosse “passos de dança!” Um “tropear” ensaiado. Mesmo jeito, mesma cadência, mesma maneira e mesma direção! Parecia que uma era à sombra da outra!
VRUUUNMMMM. Novamente o gemido!
Fiquei aperreado. Virgem, Maria Santíssima!
Sempre gostei de caminhar à noite... Mas, nunca ouvi coisa parecida.
Entre uma prosa e outra sempre alguém conta causos chegados a esses tempos de Quaresma... Assombração, lobisomem, mula sem cabeça, boitatá, alma penada, visagem... É coisa... Só que te garanto, nunca havia presenciado.
Sempre gostei da noite...
De ver aqueles bichinhos que durante o dia não saem, e às noitinhas passeiam, se alimentam. Uns comem insetos, outros frutinhas, outros caçam... O olho desses bichos parece que só enxerga na escuridão! O sol lhes dá cegueira. Mesmo assim, são belos! Cantam! Piam!...Em um alarido triste.
O passo estava avexado de um jeito que parei pra respirar. Aproveitei bocejei e, como era de costume, logo após fiz o sinal da cruz, com a ponta do polegar... Menino! O bicho pegou.
As Donas olharam pra trás, começaram a sacudir o corpo, tremendo que nem vara verde e num abrir e fechar de braço que deixaram até os tais lenços caírem ao chão...
Que coisa feia era aquela? Um cabelo ralo, que só pasto fraco. Um pó branco grudado nas ventas. Umas caras de maracujá murcho dos diabos. Uns zóios fundos, avermelhados que nem tição em brasa... E, de repente, subiu um bafo de enxofre com ovo gôro que quase que boto os cachorros n”água.
Virgem Santa! Me acuda! Soltei um grito.
Foi então, que um clarão bonito, feito centelha de trovoada, riscou na minha frente.
O bicho que gemia o tempo todo caiu dum galho, em carne viva e o resto do pêlo fumaçado.
Parecia mais, uma espécie de bode ou um cachorro grande, um Urso não era! Pois, acho que não tem desses bichos por aqui. Quem sabe um carneiro lansudo...
As velhas se abraçaram contentes, que pareciam dançar ciranda, uma piegas, uma catira...
E dessa remueta dos pecados, as duas com um único cajado fizeram esse verso a quatro mãos.
“Viemos por Maria, proteger os seus ais
E por São José, te trazer a luz
Foges ligeiro do bicho voraz
Como o inimigo “foge da cruz.”
Não contei dois tempos! Dei um salto por cima do bicho. Descambei ladeira abaixo! Pulei coivara! Ruma de espinho! Saltei três fios de cerca! E vim parar aqui. Na porta da Matriz.
O povo que já sentado, aguardava em silêncio, o Vigário. Tomaram um susto e fizeram o sinal da cruz!
Dona Inez, aquela beata chata, foi a única que disse.
- Respeite a casa de Jesus.
Também... Cheguei com a cara assustada e os cabelos arrepiados, esbaforido, estropiado, língua pra fora, suado, calça rasgada e a camisa faltando um botão!
Me apoiei num daqueles bancos compridos, que ajudei a envernizar pra Quermesse da Festa do padroeiro São José, e respirei...
Mas o descanso durou pouco!
Ao olhar pro altar, do lado do caixão do “Senhor Morto”, vi duas velhas que ao me verem cobriram o rosto com o véu.
Que perseguição!
Olhei pro canto do banco e achei um terço esquecido. Arrebatei-o bem ligeiro que quebrei o danado no meio fazendo a maior parte das contas pararem no chão. Me restando somente, dois “Pai Nosso”, e uma “Ave Maria”.
Todavia, pra garantir o estorno, resolvi dar em dobro e me prostei a rezar! Pedir ao Anjo Clemente, aquele que protege a gente dos viventes e das almas penadas, dos bichos e dos maus agouros, das pestes e dos zóio grosso...
Só não pedir mais, por não ter reza a oferecer. Então jurei em adquirir um terço novo, banhar todinho a ouro e por no mesmo lugar.
Que nessa “Semana Santa”, possamos ter compaixão e paz em nosso lar.

Um comentário:

  1. ê rpz !! Tomou coragem hem?? Uma obra dessa não poderia se perder no tempo.
    Parabéns. Agora só falta o livroi de metodo e virar doutor com o que vc já escreveu, evitando os roubos intelectuais.
    Vc merece muitos outros comentários, mas por enquanto segure esse aí.... parabéns mesmo.
    Abraços do seu irmão adotivo.

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